quinta-feira, agosto 30, 2007

CÂNTICO NEGRO

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
-Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.
Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
-Sei que não vou por aí.
(José Régio)

Poesia “roubada”do blog do meu amigo Eira-Velha, pois achei-a tão bela que quis partilhá-la também com aqueles que não freqüentam o canto desse amigo querido.

3 comentários:

Silvia Madureira disse...

Olá:

Sim, é belo! Fala de uma liberdade, de convicções muito fortes...que nós na nossa sociedade não temos...
Antigamente os escravos pareciam não ter liberdade nenhuma na mão dos brancos...mas eles eram mais livres que nós pois sabiam o que era sentir uma série de prazeres naturais que os brancos não...

Um abraço

Sol da meia noite disse...

Gostei da poesia.

Nem sempre os caminhos a trilhar são fáceis...
Nem sempre sabemos por onde ir...

Beijinhos!!!

A Flor disse...

Oi querida! :)
Um GOOD DAY para ti :D

Já conhecia este belíssimo poema do José Régio, mas nunca é demais voltar a lê-lo...

Eu também sou fiel àquilo em que acredito... sou fiel aos meus sonhos... sou fiel às minhas convicções... sou fiel a mim mesma.... mas.... nunca deixo de ouvir aquilo que os outros pensam.... gosto de partilhar "sentires", "vivências"..

Abração do tamanho do ocêano que nos separa, mas onde o Universo "une" as nossas almas :D

Beijoca doce e florida da Flor